Recursos Hídricos
É frequente referir-se que nas últimas décadas o nosso país operou o “milagre da água”.
Tal traduz uma mudança na relação dos portugueses com a água.
Hoje temo-la como segura e, aparentemente, inesgotável nas nossas torneiras. Estaremos dispostos a assumir uma nova relação, baseada na escassez?
A expressão que referiu, a do “milagre da água”, espelha, de facto, a relação dos portugueses com o setor da água nas últimas décadas. O abastecimento e o saneamento alteraram-se significativamente quando houve uma reestruturação do setor, fruto não só de necessidades sociais, ambientais, do próprio crescimento populacional, mas também dos fundos de convergência comunitária. Estes permitiram alcançar a universalização do serviço e a melhoria da qualidade desse mesmo serviço em todo o território. Foram constituídas as Águas de Portugal que, nos últimos 30 anos, infraestruturaram e investiram. A partir desse momento, a população não pensou mais na questão da falta de água. A ligação aos problemas de abastecimento e de saneamento passou a ser distante. Ou seja, por parte do cidadão passou a existir uma relação de utilização e não de preocupação. Isto traduziu-se em bem-estar, saúde e desenvolvimento económico e social. A conta da água também não é a mais significativa no contexto dos encargos mensais de uma família média, ao ficar abaixo da eletricidade, dos combustíveis e das comunicações. Ou seja, há uma relação positiva com a água, mas será que estaremos com disponibilidade para alterar o nosso comportamento? Existe forte diferenciação entre o valor percebido da água e o valor monetário atribuído. Um facto já veiculado num estudo de 2019 realizado pelo Instituto de Marketing Research [Atitudes e Comportamentos dos Portugueses face à Água].
O que nos quer dizer é que o cidadão olha para a água, identifica-a como um bem precioso, mas não racionaliza os consumos?
Cada vez mais as mudanças de paradigmas contam com prazos mais curtos. Houve um paradigma de infraestruturação na década de 1980, até aos Anos 2000 e, de repente, vemo-nos avessos à necessidade de transição para um novo paradigma, aquele que nos é imposto por uma realidade que nos diz que, a cada ano, os recursos que o Planeta produz se esgotam mais cedo, atualmente no mês de julho. Há que dizer “alto”, estamos a dilapidar o capital natural. A água é um recurso finito e a mitigação da escassez passa pelos comportamentos individuais. Diria que temos de nos desacomodar.
Um desacomodar que tem de ser trabalhado dos dois lados, do consumidor, mas também de quem gere o recurso…
Temos de trabalhar em conjunto e, neste contexto, a comunicação tem uma importância muito grande, ao acelerar a ambição face a novas necessidades, no caso concreto alterar os comportamentos como já falámos. Temos pouco tempo, pelo que temos de fazer já.
O estudo que citou também nos diz que existe uma elevada predisposição por parte dos consumidores para a aceitação de reutilização de água em uso não-potável. Contas feitas, a mentalidade está a mudar, ou não?
Existe essa consciência em relação à reutilização da água. Mas o mesmo estudo também nos diz que a recetividade cai para metade, caso implique acréscimo de custo mensal. Sei cognitivamente que é uma situação emergente, mas não quero alterar o meu comportamento porque estou bem. Por vezes muda-se face a uma situação de calamidade. Veja-se a emergência vivida na África do Sul. Os consumos passaram de 175 litros por dia e por pessoa, para 12 litros no mesmo período e por indivíduo.
Considera que há que mudar o léxico na forma como se comunica a gestão do recurso água?
O marketing é uma ciência, porque não podemos apenas ter uma dimensão cognitiva das questões, temos de ativar atitudes e comportamentos. Temos de operar sobre um plano estruturado que esteja suportado em conhecimento e ciência. Nada é mais simples que factos com suporte no conhecimento científico, porque não estão apoiados em ideologias ou dogmas. Mas, há que falar a mesma língua das populações. Não podemos continuar a usar palavras a que recorremos numa determinada emergência no passado, por exemplo quando as pessoas não tinham acesso a esgotos ou a água nas torneiras. Dou-lhe um exemplo: não podemos associar água residual a imundície. Outra palavra que temos de redefinir é “rejeitado”. No século XXI, a palavra “rejeitado” não deve fazer parte numa equação de sustentabilidade. As águas antes rejeitadas são hoje uma matéria-prima, valorizadas e reutilizadas. Como vê, trata-se de um termo que serviu no passado, mas que não serve na situação presente. A água sempre se regenerou. Ora, o que fazemos no ciclo urbano de reutilização da água é acelerar esse processo. Imagine, há umas décadas, dizer a alguém que havia uma cerveja feita com água do esgoto. Mas, atualmente, já é possível fazer-se essa cerveja. Para mudarmos em tão breve tempo há que evoluir para novas palavras, novos adjetivos e substantivos. Hoje falamos em Fábrica de Água ou em “água+” ou em conceitos como o “Lado B da Água”. Mas não conseguimos evoluir se não mudarmos a nossa mentalidade.
“Lado B da Água”? Quer explicar-nos este conceito?
O que procuramos é fazer uma associação com os discos de vinil com o seu “Lado B”, visto como o da qualidade, com o intérprete a entregar-se de forma mais completa. Isto por oposição ao “Lado A”, mais comercial. Diria que o abastecimento da água, aquela que sai da torneira, é o “Lado A”. O “Lado B” é o que se passa quando a água sai da torneira e desaparece pelo ralo. Não a vamos rejeitar, nem a tratamos como um resíduo, mas como recurso, que se chama água. Aquele que o nosso setor precisa de valorizar e introduzi-lo num processo que incorpore valor. Onde se incorpora esse valor? Na Fábrica. Uma água que depois de transformada se adequa a fins não-potáveis, como regar jardins, lavar carros ou limpar calçadas. Neste sentido, a ETAR é uma Fábrica e a água é o recurso mais relevante nesse contexto. O conceito de fábrica de água é fácil de incutir, as pessoas percebem-no facilmente. É uma fábrica, tem valor, eu tenho de pagar pelo produto que sai, que se vai incorporar-se na sociedade, numa aposta na circularidade. A água para reutilização tem tido em Portugal escasso protagonismo na atual equação climática.
Também referiu a “água+”. Uma vez mais, estamos perante uma mudança de léxico para provocar uma mudança na sociedade?
As Águas do Tejo Atlântico constituíram-se em 2017, fruto de várias empresas que já existiam dentro do grupo Águas de Portugal. Daí, conseguimos estabelecer uma estratégia que olhava para a resiliência e para a qualidade do serviço, mas também para formas de fazer evoluir esse serviço futuramente. Conseguimos criar a empresa com vários propósitos, como os da circularidade e combate às alterações climáticas. Provocámos a sociedade e nem sempre fomos bem recebidos, porque estas situações levam o seu tempo a incorporar. Criámos marcas para os produtos das fábricas, entre eles o das águas residuais. Tínhamos de lhe dar um nome que não fosse, por exemplo, “água recuperada do esgoto” [risos]. O que temos é mais água e também mais disponível para consumos não-potáveis. Criámos a marca em 2017, registámo-la em 2018 e, em 2019, sai a legislação referente à Água para Reutilização (ApR), mas se formos descodificar o conceito legal, ou seja, ApR, este não é um conceito próximo das populações. Se dissermos “água+” já confere esse reconhecimento. Mais água para a agricultura, mais água para a indústria, mais água para lavar as ruas, ou seja, revela a utilização não-potável dessa “água+”. Na verdade, os processos científicos de marketing facilitam a vida aos cientistas que precisam de uma descodificação social. Isso acelera o processo de transformação social.
Fonte: DN.