Reutilizar águas residuais: ultrapassar os 1% rumo à resiliência hídrica

Reutilizar águas residuais: ultrapassar os 1% rumo à resiliência hídrica

“Quando o poço está seco, sabemos o valor da água.” – Benjamin Franklin

Esta citação, repetida ao longo da história, ganha hoje uma atualidade inquietante. A escassez de água e os riscos de uma gestão ineficaz deixaram de ser eventualidades para se tornarem realidades recorrentes.

Enfrentamos secas prolongadas e fenómenos climáticos extremos que exigem inovação e mudança de paradigma na gestão da água. Se até agora o acesso à água parecia garantido, o futuro exige uma atitude mais proativa, sustentável e responsável.

O tratamento de águas residuais emerge como estratégia essencial para a sustentabilidade. Vai para além do saneamento, permitindo recuperar recursos e reutilizar a água, alinhando-se com os princípios da economia circular. Este processo contribui para a redução de emissões, mitigação das alterações climáticas, produção de energia, fertilização agrícola e recuperação de metais.

Na União Europeia, apenas 2,4% das águas residuais urbanas tratadas são reutilizadas, o que representa menos de 0,5% da captação anual de água doce. Embora 81% da água doce seja para fins agrícolas, potáveis e industriais, menos de 3% das águas residuais são reutilizadas. Em Portugal, esse valor é de apenas 1,2%, muito abaixo do de países como Chipre (90%) ou Malta (60%). A nível global, estima-se que 11% das águas residuais tratadas sejam reutilizadas, mas quase metade ainda é descarregada sem qualquer tratamento em rios, lagos ou oceanos. O potencial de reutilização a nível mundial é estimado em 320 mil milhões de metros cúbicos por ano.

O setor agrícola, fortemente impactado por secas e alterações climáticas tem vindo a procurar soluções como a irrigação com águas residuais tratadas para garantir maior estabilidade, reduzir a dependência da variabilidade climática e minimizar perdas de produção e rendimento. Já na indústria — o segundo maior consumidor de água na Europa — o reaproveitamento dessas águas continua subaproveitado. O Regulamento Europeu sobre Reutilização da Água permite o seu uso industrial, desde que sejam assegurados elevados padrões ambientais e de saúde.

Um exemplo concreto de sucesso de reutilização de águas residuais é o projeto desenvolvido pelo Centro Tecnológico de Gestão Ambiental (CTGA), em parceria com as Águas do Algarve (AdA), na ETAR de Quinta do Lago, em Loulé.

Este projeto visa transformar águas residuais tratadas em Águas para Reutilização ou seja, destinadas à rega de campos de golfe e espaços verdes, através de um sistema avançado de desinfeção e armazenamento que garante a qualidade microbiológica da água mesmo nos pontos de entrega.

E o impacto é claro: a substituição de cerca de 1,17 milhões de metros cúbicos de água subterrânea por água residual tratada, contribuindo significativamente para a gestão sustentável da água numa região particularmente vulnerável à escassez.

A reutilização de águas residuais é também uma medida estruturante no Programa de Ação para a Adaptação às Alterações Climáticas (P-3AC), essencial para aumentar a resiliência hídrica no nosso país. A baixa taxa de reutilização não se deve apenas à tecnologia, mas à falta de incentivos eficazes, planeamento estratégico e um alinhamento horizontal e vertical entre políticas governativas e legais.

Uma legislação clara e simplificada para o uso de águas para reutilização, de campanhas de informação e sensibilização, de financiamentos para a adaptação de infraestruturas existentes, e da integração da reutilização de água nas estratégias locais de adaptação às alterações climáticas podem contribuir para o aumento da reutilização de água residual.

Urge, agora, simplificar a legislação sobre ApR, lançar campanhas de sensibilização, financiar infraestruturas e integrar a reutilização de água nas estratégias locais de adaptação. A superação da barreira dos 1% é não só possível como imperativa. Com os esforços certos, estima-se que um simples aumento de 1% na taxa de crescimento do setor da água na Europa possa criar até 20 mil novos empregos.

Fonte: Sapo


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